Habituados estávamos a reverenciar a palavra como veículo mágico da transmissão e preservação das ideias, faculdade portentosa que nos diferencia dos animais e vegetais. Por mais que a observação atenta, corroborada pela Ciência, evidencie formas sofisticadas de comunicação de outros seres vivos, nada dis-so para nós relativiza o poder miraculoso e semântico da palavra. Que as aves migratórias preparem, decidam o momento da partida e se revezem no comando de suas quilométricas jornadas, que as abelhas hajam desenvolvido uma coreografia para sinalizar à colmeia, com precisão matemática, distância, óbices no caminho e quantidades das fontes de pólen detectadas – nada disso nos removia do pedestal em que nos instalou a palavra, apanágio da raça humana. Num livro de 2015 Peter Wohlleben descreveu em pormenores as estratégias comunicativas das árvores, entre si e com insetos e outros animais. Isso até anima os bate-papos, mas não muda um nadinha em nosso estilo predatório de vida. Afinal, dotados da prerrogativa da palavra, somos os Reis da Criação!
Não foi o Logos, dos sofistas gregos, divinizado por São João Evangelista em sua versão do Gênesis? “No princípio era o Verbo, e o Verbo era com Deus, e o Verbo era Deus”(João, 1:1). Não é verdade que a palavra, através dos séculos e em todas as culturas, servia de elemento de hierarquização social? No Ocidente, o fa-lar erudito, com escolha de vocábulos mais próximos dos originais gregos ou lati-nos, contrapunha-se à linguagem vulgar, vibrante de construções vernáculas, não raros grosseiras e chulas. Surgiram eufemismos para conceitos e interações que mexem atavicamente com as emoções humanas: o sexo, a morte, eliminação de excrementos, as forças do mal. Funções e partes do corpo consideradas menos nobres? Cumpria diferenciar-se dos nominativos aplicados pela populaça! Com o tempo, em todas as línguas, os eufemismos deslocaram a semântica original das palavras, que passaram a ser evitadas pela duplicidade de sentido. No falar brasileiro, por exemplo, ninguém mais conta que trepou na montanha ou na árvore, pois essa narrativa provocaria sorrisos maliciosos na audiência. Categorizavam-se, até recentemente, três níveis de palavras: as eruditas, as de uso familiar e os vulgares, exemplificadas pela tríade fezes, cocô e m****.
No século XXI tudo mudou. O cinema americano habituou-nos ao emprego corriqueiro das “four letters words” que costumava ser proscrito entre gente de bem. Quem as ousasse escrever tinha que se valer da minha cautela de camuflar as letras restantes com asteriscos: f***, c***, d***. Em paralelo, surgiram as restrições do politicamente correto, o cuidado para não ofender alguma etnia ou orientação sexual. E mais: pertencer à elite passou, de aspiração, a um verdadeiro anátema. O “andar de cima”, expressão cunhada pelo conhecido jornalista, procura ser tão ou mais desbocado quanto o “andar de baixo” – quem sabe desesperançado de qualquer outra fórmula para reduzir os abismos sociais que nos separam. A palavra perde sua sacralidade e, como o vírus, sofre mutação: perigosa, temida, há que se pensar muito antes de dizê-la para não se parecer elitista ou injuriar inadvertidamente algum segmento da sociedade.
Em contrapartida, o palavrão foi promovido, de abjeção a valor ético. Os pirralhos de outrora, obrigados a lavar a boca com sabão por dizer um ou outro nome-feio, são os adultos de hoje que encorajam os filhos a repeti-los em alto e bom som para serem alguém na vida.
O homem de palavra já era. O que vale agora é o homem do palavrão.
Luciano Ozório Rosa Associado do Rotary Club Rio de Janeiro
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